As Manhas do Jogo – O Desequilíbrio

Essa é a primeira parte de uma série de textos a respeito das “manhas do jogo”. Nós pegamos Dungeon World como exemplo, porém, em alguma proporção, pode se estender para outros jogos PbtA (Powered By The Apocalypse’ World). Basicamente, são uma série de dicas a respeito de assuntos relevantes que causam bastante dúvidas entre Jogadores e Mestres. Hoje iremos tratar do Desequilíbrio.


Sim, Dungeon World é um jogo com personagens desequilibrados, e tudo bem quanto a isso.

Então, existe um personagem bom e outro ruim? Não.

Quer dizer que o jogo é injusto? Também, não.

Ele privilegia um determinado papel em detrimento de outro? Não, mesmo!


Quando se diz que o jogo possui personagens desequilibrados, neste contexto, quero dizer que não existe uma preocupação em fazer os personagens mecanicamente balanceados de forma que danos e capacidades se equiparem entre si, ou que todos os personagens possam derrubar o mesmo tanto de inimigos de uma só vez. Não existe esse tipo de equilíbrio.

Apesar das possibilidades narrativas de cada personagem ser muito diversa, internamente, dentro de seu arquétipo, são bem definidas. Em outras palavras, cada uma das classes tem uma função específica dentro da trama e os movimentos reforçam o papel da classe dentro do jogo.

Os movimentos são a interface pela qual os personagens vislumbram a possibilidade de realizar coisas perigosas e façanhas divertidas dentro do jogo. Eles reforçam o papel da classe dentro do jogo e como cada classe possui um papel, cada um dos personagens terá capacidades muito distintas dos demais. Antes mesmo do sentido mecânico do movimento, o próprio título se encarrega de estabelecer uma relação forte com o tema do personagem e o tom do jogo.

É comum vermos títulos de movimentos que remetem a filmes, livros e frases clássicas da cultura pop, isso é proposital para estabelecer pontos de contato cada vez mais fortes com o tema do jogo. Veja o movimento do Guerreiro, Dobrar Barras, Suspender Portais antes mesmo de ler a parte mecânica, apenas pelo título, você já é transportado à situação onde um enorme guerreiro sustenta uma grade de ferro pesada para seus amigos passarem ou uma imagem mental de uma poderosa guerreira dobrando as barras da prisão para se libertar, passando por cima de qualquer obstáculo que se apresente em sua frente, e isso diz muito a respeito do tipo de papel que se espera desse personagem no jogo.

Matar e Pilhar, em sua versão em inglês, “Hack & Slash”, refere-se tanto a um gênero de jogo de ação quanto a um tipo de jogabilidade, onde você vai avançando e dando porrada nos inimigos à medida que eles vão aparecendo, apanhando e batendo pra caramba! Portanto, cada movimento cumpre um papel estético a fim de reforçar as diferenças entre as classes e entregar, mecanicamente, situações interessantes que ligam os arquétipos ao seu tema.

Colocando de maneira bem abstrata, pense que cada arquétipo está sob trilhos paralelos uns aos outros, em alguns momentos podem até chegar a convergir mas jamais estarão no mesmo trilho. Você pode notar que isso acontece também em outros jogos, como Apocalypse World, Urban Shadows e Sertão Bravio, por exemplo, o que me faz pensar que talvez seja um padrão entre os jogos PbtA (Powered By The Apocalypse’ World).

 

 

Avançando um pouco o pensamento, mesmo que houvesse um equilíbrio mecânico entre os personagens, nos jogos PbtaW a ficção funciona como premissa fundamental e primária, são jogos com uma abordagem ficcional. Portanto ela mesma iria se encarregar de desfazer todo conceito de equilíbrio existente, afinal o Ladrão conta suas moedas para pagar a taverna, enquanto o rei Mago, sequer precisa pegar por aquilo que reside em suas terras! O Guerreiro causa 1d10 de dano com sua espada poderosa, enquanto o Clérigo que é Arcebispo conta com sua esquadra de 12 espartanos treinados, quanto de dano eles causam? Spoiler: Sinceramente, não faz diferença.

 “Assistam Akira de 1988, Tetsuo é o mais overpower ever, certo? CERTO!! O Kaneda é só um humano normal com uma motinha legal, com o IPVA em dia. Mas assista o filme e repare que papel muito foda os dois tem.”

 

Jogos PbtA são projetados de forma diferente dos jogos que tentam simular mecanicamente a realidade imaginada. Eles se concentram na história, na ficção, que pode ser bastante realista, inclusive. Tomando essa perspectiva narrativa, tanto o MJ quanto seus movimentos, e por conseguinte os perigos e problemas colocados no caminho dos personagens, estão lá para tornar a história mais interessante, estimulante, desafiadora e complicada. Como a história é impulsionada pelas ações dos personagens, na maior parte do tempo não importa qual jogador agirá primeiro, quem é o mais rico, quem consegue destruir mais inimigos de uma só vez.

Por onde quer que caminhemos, por mais elaborada seja nossa solução para tentar equilibrar todas essas equações, nós travaremos batalhas contra o sistema e ele irá resistir bravamente até o fim. Então, cansados de tanto lutar, iremos suspirar fundo e chegar a conclusão “Não adianta pensar em equilíbrio”.

A conclusão que chegamos é bem simples, o equilíbrio entre as forças dos personagens não importa. “Tamanho não é documento” e não se deve perder tempo pensando em equilibrar o tamanho ou extensão do poder de cada um dos personagens. Afinal, quando surgir um problema, e ele irá surgir, quanto maior o seu poder, maior o impacto desse poder na história, maiores as consequências e os desastres. O que verdadeiramente importa, é se cada jogador tem a chance de cumprir o papel de seu personagem conforme foi desenhado, ou seja, todos os personagens estão tendo a chance de brilhar no jogo? Se sim, é muito provável que como MJ você não tenha nenhum problema.

Mas o que diabos devo fazer para os personagens brilharem? Esse será nosso próximo artigo desta série.

Agradecimentos especiais:

João Pedro Torres – Por suas contribuições na co-criação desta série.

Marco Araújo – Por sua crítica e correções.

Luiz Henrique Rodrigues – Pela frase do Akira e sua infâmia!